Em livrório, já temos uma ideia aumentativa. Como tudo quanto é grande tende para o disforme, não é de estranhar que ande ligada aos sufixos aumentativos uma certa representação de fealdade, de grotesco. Livrório significará um "livro grande, mas de pouco valor". Para exprimir a ideia de grandeza pura, não temos sufixo, neste caso. Não podemos criar livrão; se formarmos o derivado livralhaz, lá metemos, por via dos morfemas -alho e -az, um sentimento pejorativo. Positivamente, os livros grandes não nos merecem grande respeito; efetivamente, a nossa literatura abunda em calhamaços que não são das suas coisas mais interessantes.
M. Rodrigues Lapa, Estilística da Língua Portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p.79.
Entrava carnaval, saía carnaval,
Barata padecia do mesmo problema: a solidão misantrópica. Talvez, no começo, quando era jovem, ainda não desgostasse de pessoas. Eu escreveria
odiar, mas prometi a um amigo que evitaria esse verbo, o que já me fez bem. Desgostar é ainda reversível: pode-se desgostar, depois ser indiferente, depois até apreciar racionalmente - até alcançar o respeito pleno, por meio da diferença. Mas Barata desconheceu-me, negou-me, fez-se de sabichão e sepultou nossa amizade, nós que éramos quase irmãos; Barata não pôde ouvir meu amigo, nem nossos outros companheiros, que estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças. Barata conhecia o carnaval apenas pela televisão.
Era ainda criança quando assistia aos desfiles na TV "para ver mulher pelada". E passava a noite excitado, com peitos, bundas e bocetas que se apresentavam parcialmente, às vezes frontalmente, nos desfiles das escolas que aprendeu a diferençar. Havia as tradicionais e as mais recentes; havia paradinha na bateria, evolução, harmonia - diversos critérios que se perdiam no mar de cores das fantasias e das genitálias à mostra. Barata se apaixonava perdidamente por cada rainha de bateria, cada destaque de alegoria, cada porta-estandarte, todas as mulheres do desfile, das celebridades às anônimas - mas especialmente as celebridades. Barata não tinha nascido pra brilhar, mas se consumia todo pelo brilho inútil das estrelas: teria sido feliz se fosse homem simples, mas não podia ser honesto consigo próprio.
Disposto a desfrutar na vida prática aquilo a que assistira na TV, Barata, assim que teve idade suficiente, foi às matinês. Mas nunca teve sucesso com as mulheres nos bailes de carnaval da adolescência, nem na vida adulta. Acomodou-se à posição de espectador, onde se sentia melhor e onde podia nutrir satisfatoriamente a raiva (não escrevo o ódio, porque assim me pediu um amigo, e assim faço, aceitando-lhe a sugestão) que alimentava pelas moças bonitas que não o olhavam, pelas marchinhas que não contavam a história dele (nem as tristes, porque a sua história, pensava, era a mais triste de todas), pelos sambistas, pelos ritmistas, pelos passistas - todos riam dele, aquela alegria toda se dava a contrapelo da sua dor, numa proporção perversa. Raiva ainda das alegorias, dos rivais que lhe tomavam as musas. Estudou-os todos, um por um, as histórias, os trejeitos, os beicinhos, as maquilagens, as tragédias, as fortunas.
Tornou-se, então, professor, como todos já sabemos: quem sabe faz, quem não sabe vira professor. Barata carregava nas costas pilhas de livros sobre tudo - livrório sobre o que quer que fosse, o carnaval inclusive, que usava indiscriminadamente na situações em que sentia ser necessário dizer alguma coisa - para evitar silêncios embaraçosos ou para ocupar lacunas de afeição. Barata tinha algo de pavão: gostava de mostrar as plumas enciclopédicas, à moda de destaque da escola, e ia ganhando avenida. Eram cores sobre cores, tom sobre tom, de informações desnecessárias, mas que arrancavam algum muxoxo aos interlocutores; abundavam vocábulos pinçados de dicionários antigos, arcaísmos prepotentes, considerações sobre vidas de personalidades passageiras, construções frasais ultrapassadas, clichês românticos, observações de orelhada - tudo de uma só enfiada, num desfile fálico das palavras, na expectativa de impressionar o público atônito frente a cada despropósito de livre associação de ideias de uma supremacia qualquer, todas encadeadas no fio condutor do ego encurralado de Barata, num canto da sala, cabeça de criança, corpo de adulto.
Barata já não era Barata - poderia ser Baratão, se fosse corpulento. Mas era franzino, coitado. Poderia ser baratório - já em minúscula, homem de muita informação, admitamos, mas de pouca penetração analítico-interpretativa: repetia tudo o que lera em manuais, eles próprios já bastante carcomidos do tempo. Era agora barataz, olhos cansados na mesa da sala dos professores de uma universidade obscura, ou no camarote dos jurados do desfile das escolas de samba: era o professor barataz, respeitado estudioso de cultura popular, que escrevera o Compêndio das Grandes Sociedades, Ranchos, Blocos e Escolas de Samba do Rio de Janeiro - dos princípios até hoje, erudito do carnaval, da cultura brasileira, dos nossos intérpretes (mas que nunca pisou o chão da avenida, diziam os inimigos, nunca foi do povo, não sabia nada de samba, ruim da cabeça, doente do pé, malvado com as escolas, que nunca deu dez, para nenhuma delas, em nenhum quesito, e que escrevera um calhamaço desinteressante e sem sentido sobre o carnaval, sempre afirmando que a tradição se perdera).
Não nos deixemos iludir por fofocas de salão: Barataz, jurado eminente, apreciava misantrópico a avenida, invejoso das cores (ele mesmo era branco-e-preto); dos sorrisos (ele não sabia sorrir, nem de si próprio); das lágrimas (quando foi a última vez que chorou?); dos passos (ele nunca teve ginga pra nada); da desimportância do tempo (ele olhava no relógio o tempo todo, controlando o tempo). Mas gostava de pavonear-se em grande destaque, de imaginar que o décimo de ponto que decidiria a alegria de um barracão e a tristeza em todos os outros estava em suas mãos. E odiava - meu amigo há de desculpar-me, não sou eu que uso a palavra, mas Barata, que jamais conheci de fato e que já se consome em si mesmo como já fizemos um dia, mas não mais - dizia que Barata odiava a festa, e as pessoas, e os sambas-enredo, e as alegorias, e a alegria.
Barata odiava e invejava grande e grotescamente a alegria da morena simples que sambava na avenida e que se encantava com os destaques, e os artistas, e as celebridades: Barata fracassava todos os dias, nem podia mais ser honesto consigo próprio. Não lhe interessavam os companheiros, não lhe pude chamar a atenção, nem meu amigo pôde aproximá-lo de nós - homens presentes, interessados na matéria presente, da vida presente.